Crônica sobre o filme – A Caça –

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As palavras, as atitudes e os gestos muitas vezes são entendidos pela outra pessoa de uma forma completamente distinta de quem ofereceu. O filme “A Caça” mostra claramente essa desconexão e as confusões inerentes ao fato. Uma criança relata fatos não verdadeiros para se vingar de um professor muito querido por ela, mas que não lhe dava atenção que desejava.

Dá para se confiar no que uma criança revela, ou ela pode criar histórias do seu imaginário, logo não se configurando uma mentira? Estou trazendo esse tema para a reflexão dos leitores, pois o filme dinamarquês “A Caça”, indicado ao Oscar 2014 na categoria melhor filme estrangeiro, aborda essa temática. Mostra a vida de um professor de jardim de infância numa pequena cidade, muito afetivo e próximo aos seus alunos, e que, claramente, gostava do seu trabalho e das crianças.

Por outro lado, há uma menina que se sentia desamparada por sua família, pois seus pais brigavam constantemente. Seu irmão mais velho, eventualmente, mostrava imagens de homens de “paus duro”, o que configura um abuso com a irmã.

O professor seguidamente a levava caminhando até a escola, em decorrência do desinteresse dos pais em acompanhá-la. Seu apego ao professor era tanto que embrulhou um coração de plástico e colocou escondido no bolso de seu casaco, de presente, com seu nome Klara escrito no invólucro.

A menina observava o professor tendo contato físico e brincando com os meninos, mas ela ficava distante. Numa dessas brincadeiras, o professor disse estar tão cansado, caiu de olhos fechados e revelou que estaria morrendo. Ela aproveitou o momento e lhe deu uma beijoca na boca.

Ato contínuo, o professor se encontrou a sós com ela, e desaprovou o beijo, dizendo que isto era coisa que os adultos faziam. Perguntou a razão do coração que tinha recebido de presente. Ela, provavelmente, percebendo que sua tentativa de se achegar e sentir-se cuidada por uma figura masculina mais confiável, foi frustrada, negou que teria dado o coração.

O professor a decepcionou, pois fez uma leitura adulta das manifestações de carinho da criança. Ela sentiu-se desapontada, e provavelmente, raivosa com quem não aceitou seu desejo de aproximação. Sentia-se descuidada e abandonada pelos pais e, na sua cabeça, a mesmo situação se repetiu com o professor.

Em um outro dia,  a diretora viu a menina mais reflexiva, perguntou e insistiu para saber se tinha algo errado. A menina contou que estava chateada com o professor Lucas. A diretora começou a fazer perguntas insinuantes e indutivas sobre possíveis abusos que ele poderia ter cometido com a menina. Numa dessas perguntas, a menina disse que o professor mostrou o “pinto duro para ela”, mas no decorrer da narrativa foi se contradizendo. É muito provável que tenha se lembrado das imagens que o irmão lhe mostrou. A diretora partiu do pressuposto que criança não mente, levou o assunto a diante e a pequena comunidade logo se virou contra o até então, querido, amado e amigo professor. Sua vida virou um inferno. Foi abandonado por todos.

O filme revela toda a fragilidade, desproteção e a exposição constante que o ser humano se encontra. Nesse caso, o caos surge em decorrência de interpretações inadequadas, feita pelos adultos de revelações infantis. Além disso, também mostra como os adultos estão inundados de preconceitos e crenças, que, desta forma, a realidade externa acaba tendo pouca serventia para elucidar fatos.

O adulto olha para criança como se ela fosse um “ser retardado” que tem pouco para oferecer e, logo, não precisa ser ouvida.

Percebo que as crianças estão recebendo mais diagnósticos de doenças mentais e sendo bastante medicadas. Acredito na possibilidade de que as crianças não estejam recebendo cuidados, atenção e afetos dos pais, e que, em decorrência destas desatenções, se mostrem “adoentadas emocionalmente”. Não basta ocuparmos as crianças com múltiplas atividades, lazer, viagens, presentes, é preciso que elas se sintam amadas, valorizadas e admiradas pelos pais. O adoecimento emocional das crianças pode ser um caminho para fazer com que seus pais fiquem mais próximos delas, claro que esta aproximação acaba sendo maléfica para todos. Só é bom estar com o outro se trouxer prazer, e não por culpa, por demanda de cuidados fictícios ou imposição.

Assista o trailer do filme em: youtube.com/watch?v=gwxYwb7NbDI

Nelio Tombini
Psiquiatra


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